A Constituição deve ir à escola[i]. Sob a luz desta frase, que guiará as linhas seguintes, seguiremos algumas reflexões que ressaltam a importância da Constituição e dos professores. Nesta data em que observamos mais um aniversário da Constituição de 1988, desta vez em seus 36 anos, invocamos o espírito de Francisco Cavalcante Pontes de Miranda para um breve diálogo a partir de um de seus textos menos difundidos, qual seja, “Defesa, Guarda e Rigidez das Constituições”[ii], retomando a crítica que este jusfilósofo fez há 78 anos, quando se construía a ambiência adequada para o nascimento da Constituição de 1946, cuja vida durou aproximadamente 21 anos, até o advento de uma ditadura que seria longa, sangrenta e aterradora, que seria sucedida pela CF/88.
No referido texto, Pontes de Miranda (doravante referido apenas como o autor –nosso autor) observou que “muito se tem tratado da defesa, da guarda e da rigidez das regras constitucionais”, muito embora – prossegue – sem o “vigor e os resultados de pesquisa científica”, razão pela qual os estudos se limitavam a visitar “à superfície, sem baixarem à natureza e estrutura dos fatos”, negligenciando importantes áreas do saber: “o jurista examinou-os sem consultar a sociologia e a psicologia” [iii].
Tais negligências, a propósito, teriam sido as causas maiores de uma outra omissão: “essa a causa maior de se haver descurado a investigação da rigidez extratécnica das Constituições”, ou como menciona o autor: “a rigidez constitucional britânica, a despeito de se tratar de Constituição não rígida”, como uma provocação aos espíritos acadêmicos: “esse paradoxo bastaria para os incentivar nas pesquisas, a fim de superá-lo, mas para o mal da ciência, o esforço dos juristas e políticos continuava mais literário, jurídico ou partidário, do que científico” [iv].
Aqui o autor observa que: “se há problema que estava a reclamar a atividade metódica, a probidade de informes e a isenção de ânimo na classificação dos fatos, era esse, o da defesa, principalmente, da guarda e rigidez das Constituições”, para dizer, ainda, a seguinte síntese: “temos hoje a experiência do que significa – onde falta ao povo a rigidez extrajurídica – a retirada da rigidez técnica” [v].
Neste ponto, nosso autor menciona que “o conceito de defesa da Constituição é mais largo do que o de guarda e o de rigidez”, pois os abrange, além do fato de que “há expedientes de defesa que não são guarda, nem são rigidez”, sendo certo que a precisão dos referidos conceitos é indispensável “a quem procure entender o mecanismo e a função das Constituições na ordem estatal”[vi].
Por este motivo, na visão ponteana, a ideia de Constituição ganha tônus de ampla significância, quando se menciona: “A defesa da Constituição deve passar à frente de qualquer outra lei, por ser a lei que constitui o Estado, depois de constituído”, e, ainda, além do fato de ser “defendida contra as violações, reage a Constituição contra as tentativas de mudança que não atenderam às regras sobre reforma” [vii].
Neste ponto, se torna premente a articulação inicial do conceito de defesa, ligado a ideia subsequente de “dureza e resistência”, em sua feição dúplice: “a técnica da defesa da Constituição comporta problemas diversíssimos, como o problema da guarda da Constituição e o da rigidez constitucional, aquele ligado a órgão defensivo e esse ligado ao coeficiente de estabilidade das regras constitucionais”, considerando o fato de que “a rigidez das Constituições depende da dificuldade (absoluta ou relativa) de sua mudança; da resistência que ela opõe aos atos inconstitucionais que a tentam mudar; e da resistência que opõe às leis que a infringem” [viii].
Cita a Constituição em dois sentidos (estrito e lato). No primeiro caso, elas apenas gozariam de maior autoridade, em relação às outras leis, autoridade essa que se faz mais efetiva em razão da rigidez (psicológica, ideológica ou técnica) que lhe conferem. Por outro lado, no segundo caso, ela – Constituição – seria a fonte mesma da organização estatal, a “unidade jurídica do Estado, confundindo-se com o próprio Estado, no seu presente e no seu futuro previsto” [ix].
Mais do que isso, prossegue nosso autor, rígida ou não “alguém se há de incumbir de guardá-la”, ou seja, “de velar por sua observância, pelo respeito que se lhe deve”, seguido de um outro raciocínio em chave de compreensão: “naturalmente, velar pela sua aplicação, por parte de juízes, ou pela sua obrigatoriedade quanto aos cidadãos, é menos do que velar pela sua supremacia em relação às outras leis” [x].
O pensamento ponteano opera a interpretação da defesa separada da guarda e da rigidez, quando menciona: “a Constituição pode ser defendida sem ser pela guarda e sem ser pela rigidez. Por exemplo: pelo ensino cívico, pela sua difusão, pela demonstração de suas vantagens” [xi]. Aqui a centralidade fundante do conceito de “Rigidez Extrajurídica da Constituição”, um povo que se faz (se torna) consciente da rigidez de sua Carta Magna.
Aqui chegamos a um primeiro grande ponto culminante que deveria sempre ser retomado e ressaltado, a partir da ideia chave de que uma das melhores defesas da constituição (senão a melhor), se opera através do ensino dos elementos centrais da Constituição, feito de maneira séria e comprometida, com a evidente demonstração de importância dos professores, feito ainda nos anos iniciais de formação, alfabetização e nos ensinos fundamental e médio.
Outro ponto culminante, a despeito de aprofundamentos necessários, encontra fio condutor na seguinte afirmação de nosso autor: “Má interpretação da Constituição não é inconstitucional – é errada”, fundada dita afirmação na seguinte premissa: “os obstáculos técnicos que se opõem à reforma constitucional são defesa da Constituição, mas defesa que se exerce no plano da elaboração da regra constitucional”, algo que não se confunde com a chamada “apreciação da inconstitucionalidade das leis”, sem descurar o aspecto de que “questão prejudicial de interpretação” é uma coisa, “que se não identifica com a [ideia] de inconstitucionalidade” [xii].
E da mesma maneira que a “má interpretação da Constituição não é inconstitucional – é errada”, a “divergência entre lei ordinária e texto constitucional não supõe erro, nem tentativa de mudar a Constituição – vai contra ela, infringe-lhe alguma regra, é inconstitucional”[xiii]. Por esta via, “a defesa pode ser própria (e.g., a rigidez constitucional, que é qualidade, plus, da Constituição que a tem), ou alheia (“guarda”)”, e com isso, a ideia de superioridade da constituição, com o que “é mister defendê-la para que se lhe assegure essa superioridade”, eis que a crença em sua superioridade “sem o aparelho de defesa [seria] deixar tal conceituação de prevalência no plano puramente doutrinário, intelectual” [xiv].
Já caminhamos o suficiente para ingressar na área mais nobre do pensamento ponteano acerca do tema, preconizando que “o problema da guarda da Constituição consiste (1) em se assentar a quem se há de confiar a guarda das regras constitucionais. Depois (2) em como se há de realizar essa guarda, já que “quem pensa em guarda pensa em quem guarde e em como há de guardar” [xv].
E nosso autor entende que o mais adequado (mais eficiente) seria a guarda supraestatal, afirmando: “se o cerne pelo menos, das Constituições fosse objeto de verificação da sua compatibilidade com princípios supraestatais e existisse órgão supraestatal para as questões prejudiciais ou as causas de verificação relativas a quaisquer preceitos constitucionais”, mas, como afirmou nosso autor em 1946: “esse órgão não existe; nem tampouco se caracterizou suficientemente a supraestatalidade de alguns princípios”, razão pela qual, ainda segundo nosso autor, “o problema, portanto, pertence ainda hoje, ao direito interno” [xvi].
De fato, naquela época (946) não estavam suficientemente postas as balizas que hoje são mais conhecidas, e nem se pode afirmar que nosso autor aderiria a uma forma de defesa da Constituição a partir de órgãos do direito externo que, muitos anos depois, hoje se fazem conhecidos, mas permanece a crítica da observação ponteana sobre a matéria, quem sabe em busca de uma “Corte Constitucional Mundial”, como nos falam mais recentemente alguns autores, como Richard Albert[xvii], Arthur Giannattasio[xviii], Ariel Dulitzky[xix], dentre outros (e.g., ao mencionarem: International Constitutional Court e Inter-American Constitutional Court).
E nosso autor, então, passa a abordar as diversas tipologias existentes, falando da guarda constitucional dos cidadãos, guarda da minoria, guarda do Chefe de Estado, guarda do legislativo, guarda do judiciário, guarda do “corpo especial”, quando remete a seus antigos textos (“Fundamentos atuais do Direito Constitucional” e “Sistema de Ciência Positiva do Direito”, vol. I), para ressaltar duas inquietações ainda hoje sentidas, quais sejam, a de que “não deve haver supremacia”, “deve haver defesa da Constituição, por todos os poderes, precipuamente pelo órgão especial”, devendo ser descoberto um meio termo entre a tradição europeia e a não apreciação da compatibilidade da lei com a constituição” [xx].
E isto por um motivo que se relacionava como segundo fator de perturbação, qual seja, a obrigação de juízes emularem algum “criptoconstitucionalismo”, como afirmou nosso autor: “os males da concepção clássica, há muito superada, são conhecidos de todos. O mal da outra concepção, explicávamos nós, está em que se permite à Corte Suprema ir até a questão política, – obrigando os juízes a certo criptoconstitucionalismo, para que a sua solução se apresente como se fosse solução jurídica. No fundo, falsificação raciocinante, consciente ou não.” [xxi]
Nosso autor afirma expressamente a necessidade de optar entre o modelo judicial e o modelo do corpo especial, a solução Norte-americana da Corte Suprema e a solução Austríaca, da década de 1920, da Corte Constitucional, mencionando a solução brasileira conhecida naquela época de escrita do artigo: “entre elas há soluções intermédias, como a brasileira, da Constituição de 1934, art. 179: Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus juízes poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do poder público”, seguida da crítica sobre a concepção kelseniana das três ordens, para onde se remete o leitor (em especial a partir da página 11), que se deparará com a afirmação de nosso autor sobre Kelsen: “a escola Austríaca quis estabelecer que existe correspondência entre a rigidez das Constituições e a guarda delas, entregue a corpo especial; e essa correspondência não existe” [xxii].
Dito isto, podemos finalizar o texto, ao modo de conclusão, afirmando que é importante retornarmos ao pensamento de Pontes de Miranda, seja no reconhecimento da defesa da Constituição através do ensino e do relevante papel dos professores, fazendo a Constituição ir à escola, além de também refletirmos criticamente sobre os conceitos de Defesa, Guarda e Rigidez das Constituições, sempre em busca de aprimorar nosso modelo, reconhecendo os esforços de todos aqueles, dentro ou fora do Estado, tenham defendido e/ou guardado à Constituição de 1988.
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[i] Texto dedicado aos alunos e professores de nosso projeto piloto sobre a “Constituição vai à escola”, denominado “Tribuna Acadêmica” no Colégio In-Nova (Ex-COC, unidades Sudoeste e Jardim Botânico), em especial a Dinah Lima, Esli Paulino de Brito, Manoel Miranda, Diego Moura e Fernando Sousa.
[ii] Em duas partes na Revista mencionada. Cfr.: MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946.
[iii] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 1-2.
[iv] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 1-2.
[v] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 2.
[vi] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 2.
[vii] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 3.
[viii] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 3.
[ix] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 3.
[x] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 4.
[xi] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 4.
[xii] Aqui a referência completa: “Não se confunde com a apreciação da inconstitucionalidade das leis, quando não tem essas o fito de mudar a Constituição. Também a lei que seria acorde com a Constituição se a interpretação “a” de algum artigo fosse a certa, em vez da interpretação “b”, levanta questão prejudicial de interpretação, que não se identifica com a de inconstitucionalidade”. Cfr.: MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 4.
[xiii] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 4.
[xiv] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 5.
[xv] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 6.
[xvi] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 6.
[xvii] ALBERT, Richard. Does the World Need an International Constitutional Court? Rutgers International Law and Human Rights Journal 1, 2023.
[xviii] GIANNATTASIO, Arthur Roberto Capella; Et all. International Constitutional Court: Rise and Fall of an International Debate. Revista de Direito Internacional, vol. 16, n. 1, 2019.
[xix] DULITZKY, Ariel E. An Inter-American Constitutional Court? The Invention of the Conventionality Control by the Inter-American Court of Human Rights. TEXAS INTERNATIONAL LAW JOURNAL, vol. 51, n. 1, 2015.
[xx] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 8.
[xxi] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 8.
[xxii] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Defesa, guarda e rigidez das constituições. Revista de direito administrativo: RDA, v. 4 e 5, p. 1–12, abr-maio., 1946, p. 11.
Um texto que merece muito ser compartilhado!!!