No dia 25 de maio, os senadores do estado de Connecticut, nos Estados Unidos, tomaram uma decisão histórica ao votarem pela absolvição de 12 pessoas condenadas por bruxaria durante a época colonial, há 370 anos. Essa ação inédita levanta questões sobre justiça histórica, revisão de processos judiciais e a busca por reparação em relação a eventos sombrios do passado. Neste artigo, exploraremos os detalhes dessa votação e o contexto histórico que cercou as condenações por bruxaria em Connecticut.
Contexto Histórico
Durante o século XVII, a América colonial foi atormentada por um período conhecido como “histeria da bruxaria”. No início da década de 1690, uma série de julgamentos ocorreu na região de Salem, Massachusetts, resultando na condenação e execução de várias pessoas acusadas de praticar bruxaria. Essa onda de medo e paranoia também se espalhou para outras colônias americanas, incluindo Connecticut.
As acusações de bruxaria eram baseadas em superstições, crenças religiosas e uma atmosfera de desconfiança generalizada, qualquer comportamento que fosse considerado estranho ou fora do comum era considerado bruxaria como:
- Falar sozinha, ter sonhos vívidos ou exibir um comportamento errático, poderia ser considerado um sinal de bruxaria.
- Relações com animais: as mulheres que mantinham relações próximas com animais, especialmente gatos, eram frequentemente suspeitas de bruxaria
- Cicatrizes, marcas ou deformidades: qualquer marca física no corpo, como uma cicatriz ou uma deformidade, poderia ser interpretada como um sinal de bruxaria.
- Vida solitária: mulheres que viviam sozinhas ou afastadas da comunidade eram frequentemente vistas com suspeita, especialmente se viviam em áreas isoladas ou rurais.
- Curandeirismo: mulheres que praticavam a medicina tradicional, usando ervas e remédios caseiros, eram frequentemente associadas à bruxaria.
- Acusações de outras pessoas: muitas vezes, as mulheres eram acusadas de bruxaria por vizinhos ou conhecidos que as viam como diferentes ou suspeitas.
- Negar a culpa: a negação da culpa era frequentemente vista como uma prova da culpa, uma vez que as bruxas eram consideradas capazes de mentir e enganar para escapar da punição.
Em Connecticut, ao longo de um período de alguns anos, várias pessoas foram levadas a julgamento sob acusações de bruxaria. Dessas, 12 foram condenadas e executadas após procedimentos questionáveis pelo Tribunal de Oyer e Terminer
O Tribunal de Oyer e Terminer era um tribunal inglês medieval que existiu entre os séculos XIII e XVIII. “Oyer” significa “ouvir” em francês antigo, e “terminer” significa“ concluir” ou “decidir”. Foi instituído pelo governador Phips, que nomeou William Stoughton a responsabilidade de resolver casos criminais graves, especialmente os relacionados a bruxaria, traição, homicídio e outros crimes contra o Estado.
Uma das primeiras e mais significativas decisões de Stoughton foi permitir a admissão de provas “espectrais” (atos realizados por demónios que apenas um acusador podia ver). Com a evidência espectral permitida, o tribunal começou a julgar e executar bruxas de forma desumanas e cruel.
A atmosfera de histeria coletiva e a pressão social para condenar os supostos bruxos envolvidos tinha um clima de injustiça e paranoia. O Tribunal de Oyer e Terminer serve como um exemplo histórico de como a justiça pode ser distorcida quando o devido processo legal, os direitos individuais e a imparcialidade não são devidamente assegurados.
Evolução dos Princípios Jurídicos
A atual proibição de tortura no Brasil pela Constituição de 1988 reflete a evolução dos princípios jurídicos e a importância da proteção dos direitos humanos ao longo do tempo. Assim como o julgamento das bruxas foi marcado por procedimentos injustos e ausência de devido processo legal, resultando em condenações injustas fundamentadas em acusações infundadas, a Constituição de 1988 impõe a proibição absoluta de tortura e de tratamentos desumanos ou degradantes.
O Tribunal de Oyer e Terminer, em Salem, ilustra como a falta de garantias processuais e o abandono da presunção de inocência podem levar a abusos e injustiças. Da mesma forma, a tortura como método de obtenção de informações foi utilizada em ambas as situações, explorando o sofrimento dos acusados em busca de confissões. No entanto, a Constituição Brasileira de 1988 estabelece no artigo 5º, incisos III e III, que
“Ninguém será submetido à tortura nem ao tratamento desumano ou degradante”.
Brasil, 1988
Esse dispositivo, somado ao princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1º, demonstra um compromisso inequívoco com a preservação dos direitos fundamentais de cada indivíduo.
A doutrina de direitos humanos amplamente reconhecida também respalda essa analogia. Tratados internacionais como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes reforçam a instituição da tortura em todas as situações.
Dessa forma, a analogia entre o julgamento das Bruxas de Salem e a suspensão da tortura na Constituição de 1988 ressalta a transformação da justiça ao longo dos séculos, passando por práticas injustas e arbitrárias para uma busca ativa pela proteção dos direitos individuais e pelo respeito à dignidade humana , conformando-se com os princípios modernos de um sistema judicial justo e equitativo.
A Votação pela Absolvição
No dia 25 de maio de 2023, o Senado de Connecticut, após uma revisão cuidadosa e intensa dos registros históricos e o trabalho de diversos especialistas em advocacia e direitos humanos. Muitas das evidências que haviam levado à condenação das pessoas em questão eram baseadas em superstições e preconceitos da época, e não havia nenhuma prova conclusiva de que elas teriam, de fato, praticado bruxaria, portanto o Senado votou pela absolvição póstuma dos 12 indivíduos condenados. A decisão foi quase unânime entre os senadores, apenas o senador estadual republicano Rob Sampson deu o único voto negativo. Ele disse que era errado e infantil sugerir “que de alguma forma, temos o direito de ditar o que era certo ou errado sobre períodos do passado dos quais não temos conhecimento”.
No entanto foi demonstrando um reconhecimento coletivo de que as condenações eram injustas e baseadas em preconceitos e histeria coletiva.
Em janeiro de 1697, o Tribunal Geral de Salem havia promovido um dia de jejum em respeito às almas das mulheres condenadas além de outras retratações. Em 1711, por exemplo, os parentes das vítimas receberam 600 libras como forma de indenização pelo abuso e morte de seus familiares.
Essa votação histórica simboliza um esforço para corrigir erros do passado e reconhecer que a justiça falhou naquele momento. Ela também destaca a importância de olhar criticamente para eventos históricos e tomar medidas para retificar injustiças cometidas contra grupos ou indivíduos.
A Importância da Justiça Histórica
A justiça histórica desempenha um papel vital na reconciliação de uma sociedade com seu passado. Ao reconhecer e corrigir erros históricos, podemos promover a cura e a compreensão entre comunidades e garantir que esses erros não se repitam no futuro. A absolvição dos condenados por bruxaria em Connecticut é um passo significativo nesse processo, permitindo que suas memórias sejam restauradas e honradas.
Embora não possamos mudar o passado, podemos aprender com ele. Essa votação destaca a importância de um sistema judiciário justo e imparcial, respeitando os direitos fundamentais de todos, independentemente de suas crenças ou identidades. Ela nos lembra que devemos sempre questionar e examinar cuidadosamente as acusações e as evidências antes de tomar decisões precipitadas.
A absolvição póstuma dos 12 condenados por bruxaria em Connecticut representa um marco histórico no processo de justiça e reparação. Essa ação corajosa por parte dos senadores reconhece os erros cometidos no passado e busca restaurar a dignidade e a memória das vítimas. É um lembrete poderoso de que devemos aprender com os erros do passado para construir um futuro mais justo e compassivo.
Ao desafiar a injustiça histórica, Connecticut estabelece um exemplo para outras comunidades e países. A revisão crítica de eventos passados e a disposição de retificar erros são passos importantes em direção a uma sociedade mais inclusiva e equitativa. A votação pela absolvição dos condenados por bruxaria é um ato de redenção que reafirma nosso compromisso com a justiça e a igualdade para todos.
Sugestões de livros
As bruxas: Intriga, traição e histeria em Salem
Com base em meticulosa pesquisa, a renomada jornalista Stacy Schiff,vencedora do Pulitzer, reconstitui com precisão histórica e prosa vibranteos acontecimentos daquele ano sombrio e o surto coletivo quedesencadeou o drama das bruxas de Salem.
Um retrato
Bruxas de Salem, As – Entre o Real e o Imaginário
Da coleção Grandes Julgamentos da História, esta edição revela como o patriarcado oprimiu as mulheres, culminando na brutal execução em Salem. Este estudo sobre a visão antropológica do culto à Mãe Criadora e mantenedora da vida. Suas representantes humanas, como as mulheres, eram honradas e respeitadas pelo seu dom milagroso de gerar vida em seu ventre. Com o desenvolver da história, o patriarcado assumiu o poder e passou a oprimir as mulheres. Para explicar o porquê as mulheres passaram a ser o principal alvo da Inquisição, segue-se um estudo sobre a visão antropológica e esotérica da magia, seguido da construção e negação do “outro”, a demonização da mulher e consequentemente, a caça às bruxas. Nesse contexto, é apresentada uma narrativa dos eventos ocorridos em Salem, acompanhada de análise jurídica e interpretações deum olhar entre o real e o imaginário.