A recente ação judicial movida pela associação MATRIA — Mulheres Associadas, Mães e Trabalhadoras do Brasil contra o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reabre o debate sobre os limites constitucionais e administrativos da atuação institucional do CNJ, especialmente quanto ao uso de dados não oficiais como fundamento para promover narrativas públicas em boletins estatísticos e relatórios judiciais. Conforme noticiado pela Revista Oeste, a MATRIA questiona a utilização, por parte do CNJ, de dados fornecidos por ONGs internacionais e entidades privadas para demonstrar níveis de violência contra pessoas trans, sem que essas informações tenham sido auditadas ou validadas por institutos oficiais como IBGE, IPEA ou Ministério da Justiça. O caso oferece um cenário jurídico complexo e relevante sob a ótica do Direito Administrativo e Constitucional.
CNJ E SUA COMPETÊNCIA LEGAL
O § 4º, I, e seguintes do artigo 103-B da Constituição Federal define o Conselho Nacional de Justiça como órgão de controle da atividade administrativa e financeira do Judiciário. Embora o CNJ possa, e deva, zelar pela transparência e eficiência da Justiça, seus atos estão submetidos aos princípios da legalidade, impessoalidade e publicidade (art. 37, caput, da CF/88). O uso de estatísticas sem chancela oficial e metodologicamente frágeis, ainda que com boa intenção, pode comprometer a neutralidade do órgão e colocar em xeque sua credibilidade institucional. O risco jurídico está no eventual uso político de informações sensíveis, em um ambiente de crescente judicialização de pautas sociais.
O DIREITO À INFORMAÇÃO x DEVER DE CONFIABILIDADE
Toda autoridade pública que divulga dados estatísticos o faz sob a presunção de veracidade e com força de fé pública. Dados oficiais, especialmente quando utilizados para embasar relatórios, políticas internas ou pressões por mudanças institucionais, precisam ser produzidos com critérios técnicos rigorosos, conforme preveem normas como a Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação) e os princípios do Direito Administrativo clássico.
Assim, a controvérsia judicial instaurada pela MATRIA gira em torno de um possível desvio de finalidade por parte do CNJ — quando um órgão, ao atuar fora dos limites de sua competência, deixa de perseguir o interesse público estrito e passa a promover agendas político-ideológicas.
PRECEDENTES
A judicialização de atos do CNJ não é inédita. Alguns precedentes ilustrativos que ajudam a entender o contexto institucional:
ADI 5019 – Questionamento à Resolução CNJ nº 125/2010 (Política Judiciária de Solução de Conflitos)
Partes: Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES)
Resumo: A ação questionou a imposição, pelo CNJ, de regras para os Núcleos de Mediação e Conciliação nos tribunais estaduais.
Fundamento: Suposta violação à autonomia dos tribunais (art. 96, I, da CF/88).
Status: O STF reconheceu a validade da resolução, desde que respeitada a autonomia administrativa dos tribunais.
MS 35793. Contra provimento CNJ nº 71/2018– Censura prévia às opiniões políticas de magistrados
Partes: Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages)
Resumo: Suspensão do Provimento 71 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que trata da manifestação de magistrados nas redes sociais.
Fundamento: Alegação de extrapolação normativa e violação ao devido processo legal.
Status: O ministro Luís Roberto Barroso não identificou, no caso, as hipóteses que autorizam o controle dos atos do CNJ pelo STF.
ADI4966 Contra a Resolução CNJ 175/2013 – Casamento Homoafetiva
Partes: Partido Social Cristão (PSC)
Resumo: A Resolução determinou que os cartórios não poderiam recusar a celebração de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. A norma foi questionada com o argumento de que o CNJ não possui competência legislativa, sendo a matéria de reserva legal.
Fundamento: O PSC alegava que o CNJ teria extrapolado suas competências regulamentares , invadindo matéria reservada à lei, já que o Código Civil não tratava expressamente do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Status: O STF, por maioria, negou provimento à ADPF 496 e manteve a validade da Resolução CNJ 175/2013
O QUE ESTÁ EM JOGO
No processo atual, a associação MATRIA sustenta que o CNJ teria violado o princípio da legalidade e incorrido em abuso de poder ao divulgar, em seus relatórios, dados sem certificação oficial, o que poderia induzir a erro a população, os operadores do Direito e os órgãos públicos. A entidade requer:
- Retirada dos dados questionados dos relatórios oficiais do CNJ;
- Adoção de critérios técnicos mais rigorosos para futuras estatísticas;
- Responsabilização de eventuais gestores que tenham autorizado o uso das informações.
A ação judicial, portanto, não nega a realidade da violência contra pessoas trans — um problema grave e merecedor de atenção —, mas busca assegurar que os meios para retratar essa realidade estejam juridicamente protegidos por critérios técnicos e institucionais sólidos.
TRANSPARÊNCIA COM RESPONSABILIDADE
Em tempos de polarização política e disputas narrativas, os órgãos de Estado precisam atuar com base na legalidade, tecnicidade e imparcialidade. O CNJ, ao utilizar dados não auditados oficialmente, se expõe à crítica legítima de estar extrapolando sua função administrativa e entrando no terreno da militância institucional, o que compromete sua autoridade e pode gerar precedentes perigosos.
É possível — e desejável — que o Judiciário promova inclusão, dignidade e combate à discriminação. Mas isso deve ocorrer dentro dos marcos do Direito, com respeito aos princípios da Administração Pública e à segurança jurídica. A ação da MATRIA, nesse sentido, é um convite à reflexão sobre os limites e deveres de neutralidade que os órgãos públicos devem observar — mesmo diante de causas justas.