Não é nova a pretensão de se discutir hipotéticas alterações estruturais na Corte Suprema. Algumas são menos conhecidas, como aquela do final da ditadura militar, quando um projeto de reforma política de 1978 propunha transferir os poderes da ditadura ao STF, transformando a Corte num tipo de Conselho Constitucional com funções políticas e jurídicas, segundo Themístocles Cavalcanti, no livro “Sesquicentenário do Supremo Tribunal Federal”.
Outras são relativamente mais conhecidas, como a proposição jurídica de Fabio Konder Comparato, na constituinte de 1987-88, para transformar o STF numa Corte Constitucional ao modo europeu, e, claro, as diversas PEC’s pós-88, como a PEC 7/1999 determinando que as nomeações, pelo presidente da República, obedecessem a critérios de alternância entre os gêneros, a PEC 28/2002 determinando que a escolha dos membros do Tribunal ocorresse a partir de um “colégio eleitoral integrado pelos presidentes dos Tribunais Superiores, Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça estaduais.
Também as PEC’s 42/2003 e 6/2008 que propunham o aumento de idade para aposentadoria compulsória (75 anos), a PEC 68/2003 que propunha lista sêxtupla para eleição de ministros, a PEC 32/2007 que buscava acrescentar o requisito de portador de curso superior ao lado da ilibada reputação e do notório saber jurídico, a PEC 30/2008 que buscava criar a captura da indicação de membros através da eleição prévia por grupo composto pelas CCJ’s do Senado e da Câmara e pela OAB, com posterior escolha pelo próprio STF; a PEC 51/2009 que buscava submeter os ministros do STF a uma confirmação periódica de seus nomes a cada 4 anos pelo Senado; a PEC 12/2010 que buscava ampliar os conceitos de reputação ilibada com a definição de não condenação penal transitada em julgado, e notável saber como a atividade jurídica não inferior a 10 anos, junto com a titulação de mestre em direito e a publicação de trabalhos e teses jurídicas, sendo a escolha decorrente de lista tríplice pelos tribunais superiores.
Mencionemos, ainda, as PEC’s 4/2011, 68/2013 e 17/2015, que buscavam estabelecer um certo prazo para o presidente da república indicar os nomes ao escrutínio do Senado, ou a PEC 44/2012, que estabelecia a necessária origem dos ministros a partir das carreiras jurídicas, em lista sêxtupla indicada por OAB, MPF, CNJ e Câmara, com aprovação por 2/3 do plenário do Senado; ou a PEC 58/2012 que estabelecia um mandato de 8 anos, e a possibilidade de indicação de servidor público ao cargo de ministro, que teria o direito de retornar ao cargo originário após o término do mandato.
Já a PEC 3/2013 estabelecia um mandato de 15 anos, aumentando o número de membros para 15, a partir de lista quádrupla elaborada por OAB, CNJ, CNMP e Tribunais Superiores. E, ainda, a PEC 50/2013, que fracionava a indicação das vagas, estabelecendo 5 para o presidente da república, 3 para a câmara e 3 para o senado, a partir de listas sêxtuplas dos respectivos órgãos de classe. Também a PEC 3/2014, que propunha uma forma distinta de fracionamento das vagas, sendo 3 do presidente da república, 1 do Congresso Nacional, 1 da OAB, 1 do MP estadual, 1 do MP da União indicado pelo PGR, 1 dos TJ’s estaduais, 1 alternada entre TRF’s e TRT’s, e 1 do STJ.
A PEC 52/2015 propunha a realização de concurso público de provas e títulos para o preenchimento da vaga de ministro do STF, com mandato de 5 anos. Enfim, constam ainda diversas outras PEC’s que repetem as fórmulas anteriores com breves alterações: PEC 46/2014, PEC 55/2014, PEC 35/2015, PEC 46/2015, PEC 59/2015, PEC 11/2018, PEC 16/2019, PEC 77/2019, dentre outras velhas atuais proposições.
A pretexto de alterar radicalmente a STF, muitos juristas defendem tais alterações como necessárias à “oxigenação” na Suprema Corte. E o fundamento para uma tal oxigenação, sem embargo de muitas outras questões, seria a suposta reiteração de decisões acerca de temas políticos de maneira ativista por suposto “capricho” dos juízes do STF, que estariam interferindo em temas de competência exclusiva dos outros poderes, em decorrência da judicialização da política. Muitos também afirmam que não seriam claros os critérios para a escolha de integrantes da Suprema Corte, pois alguns candidatos seriam patrocinados por pessoas influentes no governo, etc., como se diz por aí.
Entretanto, parece uma indevida hipérbole, mormente porque o Supremo só age quando provocado, e a própria Corte Suprema possui notável função política que funcionou assim desde seus tempos mais remotos, seja em momentos de maior ou menor tensão político-democrática.
A pretexto de discutir o desenho e os pressupostos filosóficos da Suprema Corte brasileira, muitos provavelmente criticam o STF muito mais por causa de seus acertos do que por seus erros, que existem e são variados. Aliás, é visível o fato de que no período recente da pandemia de Covid-19 (2020-2023), enquanto muitos juristas discutiam uma equivocada hermenêutica para o art. 142 da CF/88, a Corte desempenhou papel fundamental na defesa da Constituição e na preservação dos pilares de nossa ordem constitucional e democrática, já que a ideia mínima de constitucionalismo reside num conhecido tripé: proteger direitos fundamentais, evitar abusos do poder governamental e reafirmar o estado de direito.
Eventuais erros e exageros em suas decisões são tributários da natureza humana de seus integrantes, algo que jamais pode conduzir ao ideário iconoclasta ou de mera implosão de seu modelo em razão de alguns aportes decorrentes de desejos radicalistas, conduzindo a uma crítica pontual e fundamentada, em especial por parte dos acadêmicos e dos profissionais do direito, sem exagero e com sincera demonstração de aprimoramento, não de destruição.
Além disso, a maneira peculiar de funcionamento do Tribunal deve passar por escrutínio, sem dúvida, o que envolve refletir sobre a forma de indicação de seus membros, sua competência e os limites do exercício de sua função judicante, além de sua autorregularão, e os temas que devem (ou não) ser deixados ao rigor reflexivo da própria Suprema Corte, como aspectos inerentes aos modelos de deliberação (seriatim vs. per curiam) e os expedientes que podem (ou não) ser utilizados, como os limites dos pedidos de vista, largueza ou restrição do uso do plenário virtual ou da monocratização, a discricionariedade sobre o reconhecimento da repercussão geral e os contornos de edição e aplicação de suas tradicionais súmulas e de suas súmulas vinculantes, com o aprofundamento das discussões sobre o tema da “jurisprudência defensiva”.
No âmbito constitucional internacional, a propósito, discute-se com certa frequência a oposição entre duas correntes: Originalismo x Constituição viva, pressupondo, claro, o papel das Supremas Cortes nesse contexto. Num reducionismo talvez até simplificador, em razão do espaço deste artigo, podemos recordar que a primeira corrente, informada pela influência do falecido jurista Robert Bork, entende que a Constituição deve ser aquele documento existente no momento exato de sua promulgação, e o papel da Suprema Corte seria o de garantir a fidelidade à “intenção original” de um passado de mais de 200 anos!
Por outro lado, a segunda corrente estaria imbuída do papel de ser o fiel da preservação do texto constitucional, embora com a assimilação de que assim como a sociedade, a sua carta constitucional seria uma espécie de organismo vivo, que deve acompanhá-la, vindo daí a origem da metáfora, originada em livro de Woodrow Wilson, “Constitutional Government in the United States”, publicado em 1908, no qual mencionou: “As constituições políticas vivas devem ser darwinianas na estrutura e na prática”. Há ainda um papel intermediário, sem mencionarmos detidamente Jack Balkin ou David Strauss, mas ao menos registremos algumas possíveis visões sobre Ronald Dworkin, que em sua última fase foi interpretado como um “originalista abstrato”, mas é um “filósofo do meio”.
Um episódio particular permite jogar luzes nesta temática, envolvendo dois dos maiores representantes dessas correntes. De um lado, o já mencionado Robert Bork, indicado ao cargo de Juiz da Suprema Corte americana em 1987. Do outro, o filósofo do direito Ronald Dworkin, que foi o grande responsável por defender na imprensa a rejeição do nome de Bork no senado americano, com seu famoso texto “The Bork Nomination”, publicado no “The New York Review of Books”.
No que importa recordar, Bork garantiu sua possibilidade de vaga após um acordo espúrio com o presidente Nixon, no episódio conhecido como massacre de sábado à noite, em 1973, durante o caso “Watergate”, após a pressão pela demissão do procurador especial Archibald Cox. É que o republicano Nixon exigiu a demissão deste procurador a Elliot Richardson, Procurador-Geral, que recusou a ordem e pediu demissão. Chegando tal ordem ao Vice-Procurador, William Ruckelshaus, este agiu da mesma maneira, quando então Nixon procura Robert Bork, o terceiro na cadeia de comando, que executa a ordem de demissão, muito embora seja conhecido o fato de que 10 dias depois seria iniciado o impeachment que resultaria na renúncia presidencial.
Pois bem, ao tomar conhecimento da indicação de Bork para a Suprema Corte em 1987, Dworkin defenderia nos jornais que o importante não seria uma mudança estrutural da Corte, mas sim que o senado exercesse o seu papel, impedindo a entrada de Bork por causa de seu posicionamento radical extremista sobre temas já consolidados na cultura norte-americana, num texto seminal e de leitura atualíssima, considerando os pressupostos e requisitos para ocupar o digno cargo de ministro da Suprema Corte.
No caso brasileiro, a propósito, segundo o art. 101 da CF/88, os conhecidos requisitos de idade (“mais de trinta e cinco e menos de setenta anos”), tipo e nível de conhecimento (“notável saber jurídico”) e tipo e espécie de respeitabilidade (“reputação ilibada”), como descrito.
Quanto ao primeiro, a idade, provavelmente a Constituição deva ser mais comedida para tentar conciliar maturidade e formação, de lege ferenda, sem desprezar a juventude, e de modo a aproveitar a maturidade mais amplamente, tornando-a mais prudente com um mandato de 10 anos, com a idade mínima de 50 anos como referência.
Sobre o segundo (conhecimento), o tema remonta ao antigo Parecer elaborado pelo então Senador (posteriormente seria nomeado ministro do Supremo) João Barbalho sobre a nomeação do Dr. Candido Barata Ribeiro para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, onde consta como não aprovada, em Sessão secreta de 24 de setembro de 1894, em diversos “considerandos”.
Dentre suas considerações, cita a “transcendência de graves interesses da ordem política, civil e judiciária”, e que os juízes do Tribunal devem ser notáveis por seus conhecimentos humanos, em especial “de jurisprudência que entendem com a organização política do país, legislação federal e estadual, tratados e convenções internacionais, direito marítimo, direito criminal e civil, internacional e criminologia política”, já que a função de ministro do Supremo é integrar “alto conselho nacional conservador da Constituição, das leis, das garantias e direitos dos Estados e dos indivíduos”, que em relação ao “notável saber” significa “habilitação científica em alto grau nas matérias sobre que o Tribunal tem de pronunciar-se, jus dicere”, ou “inteira competência e sabedoria que no conhecimento de direito devem ter os jurisconsultos”, algo que o parecer vai atrelar ao direito comparado (cita o exemplo da Suíça, a partir da obra do jurista Jakob Dubs, “Le Droit public de la confederation Suisse”, de 1878).
O referido parecer prossegue, ainda, afirmando que os fins da instituição estariam comprometidos se “pudesse entender que o sentido daquela expressão ‘notável saber’, referindo-se a outros ramos de conhecimentos humanos, independesse dos que dizem respeito à ciência jurídica, pois que isso daria cabimento ao absurdo de compor-se um tribunal judiciário” de “astrônomos, químicos, arquitetos, etc., sem se inquirir da habilitação profissional em direito”, aduzindo que a combinação dos artigos 56 e 72, § 24, da Constituição de 1891, necessitariam de interpretação específica, o primeiro versando sobre “reputação e notável saber”, e o segundo versando sobre a “liberdade para o exercício de qualquer profissão”.
Por estas linhas, prossegue o parecer, mencionando que se os referidos artigos fossem “somados”, “poder-se-ia concluir pela legitimidade da nomeação para membro do Supremo Tribunal Federal de um indivíduo não diplomado por alguma das Faculdades de Direito da República”, mas não se poderia “concluir senão pela nomeação de pessoa de notável saber jurídico, e não de quem nunca gozou dessa reputação, e nem há revelado sequer medíocre instrução em jurisprudência.
Provavelmente o mais adequado, ainda em termos de reflexão de lege ferenda, seja aprofundar a discussão com a padronização dos indicados com a titulação mínima de Doutor em Direito há pelo menos dez anos antes da indicação.
Quanto ao outro requisito (respeitabilidade), modernamente se recorre ao Parecer n. 812/1999 da CCJ do Senado brasileiro, de autoriza do falecido Senador Ramez Tebet, em resposta à Consulta n. 1, de 1999, da Mesa do Senado Federal, que, acolhendo solicitação do Senador José Eduardo Dutra, que indagava sobre o conceito de “reputação ilibada”, inscrita na Constituição.
Neste Parecer, se interpretou e estabeleceu que “o candidato que desfruta, no âmbito da sociedade em que vive, de reconhecida idoneidade moral, que é a qualidade da pessoa integra, sem mancha, incorrupta”, prossegue, “(…) cabe a esta Casa também analisar os seus antecedentes, para o fim de considerar se, ao assumir suas funções, o indicado poderá ir de encontro aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade que devem nortear a administração pública”.
Assim, de maneira relevante, observamos o tema dos requisitos para o exercício do cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, quando os indicados devem ser escrutinados para saber se estariam em consonância com os desígnios constitucionais inspirados nos ecos federalistas que remontam a Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, mas não apenas, pois insuficientes.
Não desconhecemos o fato de que todas as instituições são humanamente falíveis e podem demandar algum aprimoramento (e de maneira prudente), vale dizer, sem radicalismos, como o parlamento, ou o executivo, sem esquecer estruturalmente do próprio judiciário, e, nesse contexto, igualmente as funções essenciais à justiça para tentarmos resolver parte do problema da jurisprudência defensiva, da uniformização da jurisprudência e da segurança jurídica, mas sobretudo da guarda e defesa da Constituição.
Contudo, olhemos mais de perto os louváveis méritos da Suprema Corte brasileira, percebendo que se ela for encapsulada sob o fundamento de necessária oxigenação, como várias vezes proposto, não será um órgão vivo e nem muito menos um guardião. Colocada numa redoma e disputada por grupos diversos, com tantas e tão radicais alterações simultâneas, corremos o risco de destruir o próprio estado democrático de direito. Tenhamos a coragem e a humildade de analisar o tema com prudência e serenidade, sempre e sempre! Se mudanças são necessárias, que sejam ponderadas longe de radicalismos e palavras de ordem.
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