Eça de Queiróz seria suficientemente conhecido, prescindindo de outros adereços ou elementos que o identificassem, tanto como diplomata quanto como escritor talentoso, claro, mas quis o destino que seu avô paterno – Joaquim José de Queirós (Conselheiro Queirós) – tivesse sido Desembargador e Ministro da Justiça no 17º governo da Monarquia Constitucional, e que seu pai – José Maria de Almeida Teixeira de Queirós – igualmente entrasse para a história, nascido no Rio de Janeiro enquanto o avô de Eça desempenhava funções judicantes no Recife, com subsequente retorno a Portugal, nos anos seguintes.
O pai de Eça de Queiróz ficaria marcado como o Juiz titular do Tribunal Criminal, no 1º Distrito do Porto, que veio a presidir o célebre caso relacionado à acusação de adultério de Ana Plácido e Camilo Castelo Branco (1859-61), cujo processo se encontra exposto em destaque no Museu do Tribunal da Relação (Porto), e que possui o Brasil como destacado elemento histórico, não apenas porque o marido traído, da alegação de adultério, era brasileiro, mas principalmente pelas 35 (trinta e cinco) vezes em que as expressões “Brasil” ou “brasileiro” aparecem no romance (confidência) intitulado “Memórias do Cárcere”[i], escrito por Camilo durante o período em que ficou preso (1 ano e 16 dias!) sob dita acusação, da qual seria absolvido posteriormente por falta de provas.
No capítulo XXII da referida obra, Camilo Castelo Branco descreve o momento em que uma certa Maria, filha de “morgado do R***”, apunhala um homem que lhe havia trapaceado, armando um plano de vingança. Menciona: “Era a vez primeira que se sentia mulher. Tinha um punhal no seio, e o ferro cortava‑lhe primeiro as fibras a ela. O coração arquejava contra o instrumento da morte”, quando a ação se desenvolve, a facada que corta a carne e perfura o peito, contudo, sem matá-lo: “O ferido estavao gravemente; mas dava a esperar salvar-se”[ii].
Mas é na parte subsequente da narrativa que veremos a utilização da expressão “zagalotes”, após a descrição de uma tragédia de um pai que não aceitava a suposta desonra da filha, e para quem já tinha dito que se ela tinha amor pelo brasileiro, ele (o pai) tinha uma carabina, quando foi urdido um plano de rapto amoroso, não obstante os riscos envolvidos, e mesmo que muitos o aconselhassem a recorrer à justiça, o pai respondia “que a ação da justiça era muito demorada” , e no momento exato em que o brasileiro caminhava, observou o quase futuro sogro, idealizando desculpar-se, mas não adiantava: “O morgado fez pé atrás, meteulhe ao peito a arma, e traspassou-o com os zagalotes. O brasileiro caiu subitamente cadáver”.[iii]
Como verbete de dicionário, a referida expressão “zagalotes” é descrita como “pequena bala de chumbo para espingarda”, e é certo que a ação descrita envolve contexto e interpretação, algo que poderia parar no momento anterior ao disparo, com a preservação da vida do galanteador, não obstante fosse discutível a eventual consequência jurídica, ao passo que, com o evento descrito, temos igualmente uma necessária interpretação, algo que muitos querem atribuir aos escaninhos da inteligência artificial, seja para reduzir (leia-se: resumir) as complexidades, ou mesmo para “filtra-la” através da artificialidade.
Ao menos desde o ano de 2002, as iniciais “TL; DR” – “too long; didn’t read” tem sido utilizadas em textos e na prática cotidiana, traduzido livremente como “LD; NL – longo demais, não li”, geralmente empregado para dizer que algo exigiria muito tempo de leitura e, portanto, não foi lido, sugerindo resumo e simplificação. O atual estágio das relações informáticas, com a inteligência artificial, inclusive já permite resumir textos com base na mesma ideia de que, longos demais, os textos precisariam de redução “bestializadora”, neologismo que utilizamos aqui como uma homenagem ao falecido professor José Murilo de Carvalho[iv].
Pois bem, sem maiores “complexidades”, i.e., o site “tldrthis.com” apresenta uma “ideia” que é a face da tendência atual: “reduza qualquer artigo (texto, parágrafo, ensaio, documento, página da internet)”, descrevendo-se da seguinte maneira: resume qualquer trecho de texto num conteúdo conciso e fácil de digerir, para que você possa se livrar da sobrecarga de informações.
Como exemplo, pedimos ao site que nos ajudasse a reduzir (resumir) um parágrafo do texto “Atentado à superficialidade: repensando o ensino jurídico com Streck”, de autoria de Leonardo Longen do Nascimento[v], em que o autor faz algumas observações sobre sérios problemas do ensino jurídico e acerca do novo livro do professor Lenio Streck[vi], com o seguinte teor: “O ponto central e a grande virtude da crítica do professor ao ensino jurídico está em identificar como este caldo de mediocridade se retroalimenta e resulta em um círculo vicioso reprodutor do realismo jurídico à brasileira”.
Como resultado, devolveu a seguinte frase, com duas perguntas subsequentes: “O texto discute a crítica do professor ao ensino jurídico no Brasil, identificando como o “caldo de mediocridade” se retroalimenta, resultando em um círculo vicioso que reproduz o realismo jurídico à brasileira. A grande virtude da crítica está em apontar esse problema sistêmico no ensino jurídico. 1. Qual é o ponto central e a grande virtude da crítica do professor ao ensino jurídico? 2. Como o “caldo de mediocridade” no ensino jurídico se retroalimenta e resulta em um círculo vicioso?”.
E ao clicarmos nas duas perguntas, obtivemos algumas respostas. Para a primeira: “O ponto central e a grande virtude da crítica do professor ao ensino jurídico está em identificar como o “caldo de mediocridade” se retroalimenta e resulta em um círculo vicioso reprodutor do realismo jurídico à brasileira”; e, para a segunda: “Sim, a pergunta de acompanhamento “Como o ‘caldo de mediocridade’ no ensino jurídico se retroalimenta e resulta em um círculo vicioso?” é uma pergunta substantiva que aprofunda a compreensão do tópico discutido. Ela pode ser reformulada como uma questão autônoma mantendo o seu significado original: “Como o ‘caldo de mediocridade’ no ensino jurídico se retroalimenta e resulta em um círculo vicioso?”
Isso fez soar a sirene “rolando lero”, que todos os professores temos ao identificar um aluno que, ao ser questionado se leu um determinado texto ou fez o trabalho sugerido (ou determinado), responde repetindo a própria pergunta com algumas poucas distinções de pontuação, entonação ou retórica.
Resolvemos refazer o teste (que sempre significará renovar a pergunta), desta vez a partir de um parágrafo escrito pelo próprio professor Lenio Streck, em “O pan-principiologismo e o sorriso do lagarto” [vii], adiante reproduzido: “Outro fator que colabora para o desenvolvimento desse tipo de fragilização do direito é o ensino jurídico, ainda dominado – ou fundamentalmente tomado – por uma cultura estandardizada. Leituras superficiais, livros que buscam simplificar questões absolutamente complexas. A pergunta que faço é: alguém se operaria com um médico que escrevesse um livro chamado ‘cirurgia cardíaca simplificada’?”
A resposta veio com a transcrição do seguinte fragmento: “A passagem discute como o sistema de ensino jurídico no contexto do autor é dominado por uma cultura padronizada, com leituras superficiais e livros que tentam simplificar questões jurídicas complexas. O autor faz uma analogia com a área médica, questionando se alguém se submeteria a uma cirurgia com um médico que escreveu um livro chamado “Cirurgia Cardíaca Simplificada”. A passagem sugere que este tipo de abordagem simplificada ao ensino jurídico contribui para a fragilidade e enfraquecimento do sistema jurídico.”
Agora poderíamos até estar um pouco mais satisfeitos com a resposta, embora esta tenha nos deixado intrigados com as 3 perguntas que sugeriu, e as respostas que forneceu. Vejamos.
Primeiro, “Qual é a principal questão que a passagem discute em relação ao sistema de ensino jurídico?”, respondendo: “O principal problema discutido na passagem sobre o sistema de ensino jurídico é que ele é dominado por uma cultura padronizada que promove leituras superficiais e livros que tentam simplificar questões jurídicas complexas. Isto é percebido como um fator que contribui para a fragilidade e enfraquecimento do sistema jurídico.”
Segundo, “Que analogia o autor usa para ilustrar o problema da simplificação de questões jurídicas complexas?”, respondendo: “O autor usa a analogia de perguntar se alguém faria uma cirurgia com um médico que escreveu um livro chamado “cirurgia cardíaca simplificada”. Esta analogia procura ilustrar o problema da simplificação de questões juridicamente complexas da mesma forma que seria preocupante simplificar procedimentos médicos complexos.”
Terceiro, “Como o autor sugere que a abordagem simplificada da educação jurídica está impactando o sistema jurídico?”, respondendo: “O autor sugere que a abordagem simplificada do ensino jurídico está contribuindo para o enfraquecimento do sistema jurídico. Isto porque a cultura padronizada dominante no ensino jurídico promove leituras superficiais e a simplificação de questões juridicamente complexas, o que por sua vez enfraquece a compreensão e a aplicação eficaz do direito”.
Por último, tentamos refazer o teste, pedindo a um concorrente (“aithor”), que ao receber o parágrafo do livro de Camilo Castelo Branco, na exata passagem sobre os zagalotes, respondeu (resumiu, sim-pli-fi-cou): “Análise da violência na literatura brasileira do século XIX”, ou seja, absolutamente errado, pois! Com isso, desistimos em razão da absoluta ineficácia do meio, do ponto de vista da Constituição Federal, que para muitos é “longa demais; não leram”, e que na pretensão de resumos e “novos rumos” que os Tribunais e os agentes do sistema de justiça insistem em (re)fazer, devem prestar mais atenção à necessidade de leitura, reflexão e impossibilidade de redução impune da complexidade.
Em suma, o fracasso mesmo já se apresenta quando, no trabalho habitual dos profissionais do direito (da formação à atuação), nós observamos o “combo”: (i) formação a partir de leituras simplificadas (resumos de resumos, “longos demais, não li”), aliado a ausência de pesquisa aprofundada; (ii) ensino que se vale de decoreba de leis e súmulas, gincanas e brincadeiras; (iii) multiplicação dos cursos jurídicos do tipo “caça níquel” com exploração do professor através de baixas remunerações e ausência de formação mínima dos docentes, (iv) concursos públicos que parecem “quiz shows”; (v) petições, pareceres e decisões que se valem de procedimentos variados de I.A. para economizar o tempo de estagiários, advogados, servidores, promotores e juízes; (vi) entendimentos dos tribunais que constroem “jurisprudência defensiva” (com a naturalização da ideia de que os Tribunais podem se defender do jurisdicionado); (vii) edição descontrolada de súmulas com característica legislativa, como se os Tribunais pudessem legislar (e que fariam seu idealizador, Victor Nunes Leal, rolar no caixão); dente outros!
E isto porque a inteligência artificial, aliada a todos os graves problemas de caráter formativo e atuação concreta, se transformam no próprio cartucho dos zagalotes que perfuram o peito da Constituição, quando os Tribunais e agentes “metemlhe ao peito a arma, traspassando-a com a munição, [e assim] a justiça cai subitamente cadáver”. História de fim estranhamente repetido! É preciso reverter o quadro, de maneira urgente, pois se há um “estado de coisas inconstitucional”, este é a prática e o ensino jurídicos.
[i] Castelo Branco, Camilo. Memórias do Cárcere. Lisboa: Imprensa Nacional, 2020.
[ii] Castelo Branco, Camilo. Memórias do Cárcere. Lisboa: Imprensa Nacional, 2020, p. 223.
[iii] Castelo Branco, Camilo. Memórias do Cárcere. Lisboa: Imprensa Nacional, 2020, p. 227.
[iv] Aqui a sugestão de futuras reflexões sobre as expressões “bestializados” e “bilontras” no âmbito da percepção do fenômeno “artificialização do direito”. Quem são, o que fazem e como vivem? Cfr. Carvalho, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 140.
[v] Cf. Nascimento, Leonardo Longen do. Atentado à superficialidade: repensando o ensino jurídico com Streck, Conjur de 22 de junho de 2024.
[vi] Novo livro do professor Lenio Streck. Cfr. Streck, Lenio. O ensino jurídico (e)m crise, (que será lançado em breve), 2024 (no prelo).
[vii] Streck, Lenio. O pan-principiologismo e o sorriso do lagarto. Conjur de 22 de março de 2012.