Em matéria publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), comemorando seus 20 anos de existência, destaca-se o papel fundamental da tecnologia na modernização do Judiciário brasileiro. A adoção de IA e outras ferramentas digitais tem sido crucial para reforçar a capacidade de trabalho dos tribunais, agilizando processos e otimizando a prestação jurisdicional em todo o país.
Ainda que não ostentem crachás de servidores, magistrados, colaboradores ou estagiários, nomes como Ágata, Laura, Expedito, Mário Lúcio, Clóvis, Larry e Soseverino já são figuras essenciais no Poder Judiciário. Fruto da inventividade dos tribunais brasileiros, esses robôs operam com notável eficiência, cada qual desempenhando uma função distinta e crucial. Nos 20 anos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a serem celebrados em junho, a integração dessas ferramentas à rotina do Judiciário representa um marco significativo na trajetória de transformação digital da Justiça. Essa força de trabalho tecnológica complementa e otimiza a atuação humana, marcando uma nova era para a prestação jurisdicional no país. Conheça as soluções robóticas criadas pelos tribunais.
ROBÔS
Soseverino
Robô cujo nome é uma homenagem ao ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino, reconhecido como o “ministro dos precedentes”, o Soseverino tem em seu nome também a fusão da referência ao “SO” de “sobrestamento” e a representação do nome popular, com fortes raízes na cultura nordestina. Como o nome indica, ele atua quando o processo está sobrestado, aguardando o julgamento de temas repetitivos ou precedentes qualificados.
Soseverino foi desenvolvido por meio de parceria entre o CNJ e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN), utilizando tecnologias modernas (Spring Boot 2.7 e Java 17), mas o robô é discreto: ele não possui interface gráfica, uma vez que atua como um JOB, que é uma espécie de tarefa agendada. “Ou seja, é uma atividade programada para ser executada automaticamente em um horário ou intervalo específico, sem intervenção manual”, explica o secretário de Tecnologia da Informação e Comunicação (Setic) do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, Gerânio Gomes.
Segundo ele, nessa execução, o robô consulta o Núcleo de Gerenciamento de Precedentes (Nugep), junta uma etiqueta indicando o tema e sinaliza os processos no Processo Judicial Eletrônico (PJe), sistema de tramitação processual também desenvolvido com participação do CNJ, instituído pela Resolução n. 185/2013. O PJe permite a proposição de atos jurídicos e o acompanhamento do trâmite processual de forma padronizada, mas considerando características inerentes a cada ramo da Justiça.
Em maio de 2024, o Soseverino começou a atuar no PJE Primeiro Grau e, em agosto, no Segundo Grau. “O robô já atuou no dessobrestamento de 766 processos no 1.º grau e 1.612 processos no 2.º grau”, conta Gomes, ressaltando que, desse modo, ele imprime maior celeridade da tramitação processual e na resposta do Judiciário ao cidadão.
O TJRN conta ainda com outros robôs atuantes em tarefas internas, como o Concriz, desenvolvido para apoiar os servidores do TJRN no cumprimento de tarefas rotineiras de secretaria. Além de otimizar o fluxo de trabalho, essa automação contribui para a prevenção de Lesão por Esforço Repetitivo (LER), ao reduzir a necessidade de atividades manuais repetitivas. O Concriz foi implementado por meio de RPA (Automação Robótica de Processos), utilizando as ferramentas Python e Selenium, com foco na execução de rotinas dentro do PJe.
Marias
Outro recurso importante, diz o secretário de TIC do TJRN, é o Marias — Radar de Vulnerabilidade Feminina —, um painel desenvolvido para automatizar a identificação, no PJe, dos Formulários Nacionais de Avaliação de Risco (Fonar) em processos de medida protetiva de urgência. O Marias utiliza tecnologia para localizar os formulários no sistema, além de extrair automaticamente as informações contidas nos formulários. Com base nesses dados, são geradas estatísticas sobre tipos de violência, reincidência de agressores e perfis das vítimas e dos ofensores, apoiando estratégias de prevenção e enfrentamento à violência contra a mulher.
O TJRN conta com a ajuda de um robô também para o atendimento ao público externo. O Agile Bot é o robô dedicado ao atendimento de chamados de Tecnologia da Informação e Comunicação. Desenvolvido para otimizar o suporte técnico, ele oferece um atendimento ágil e eficiente a todo o público, disponibilizando opções que facilitam a resolução rápida das demandas e contribuem para a melhoria contínua dos serviços.
Laura e Expedito
Em operação desde outubro de 2023, a robô Laura é mestre em fazer contas. Não é para menos: o nome dela é uma homenagem à pernambucana Maria Laura Lopes, a primeira doutora em Matemática do Brasil. A robô atua na fase de liquidação de sentença e na apuração de custas processuais, ou seja, na fase final dos processos, quando são feitos os cálculos para encerramento e arquivamento.
“Em pouco mais de dois meses de uso do Laura pela central de contadoria remota, entre maio e julho de 2024, foram realizados 13.295 cálculos de custas, totalizando R$ 11.684.794,79. Até aquele momento, Laura tinha calculado 20.014 processos de outubro de 2023 a julho de 2024. Já os cálculos de custas foram 997 cálculos, significando R$ 2.397.060,27 entre 1.º a 31 de julho de 2024”, relata a secretária de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), Juliana Neiva.
O projeto foi iniciado em 2023 pela iniciativa de um servidor que foi acolhida pelo laboratório Ideias e pela Escola Judicial de Pernambuco (Esmape), com apoio da alta administração do tribunal. Passou por fases de validação, desenvolvimento e expansão, com participação colaborativa da Secretaria de Tecnologia da Informação e Comunicação (Setic), da Contadoria do TJPE, do Tribunal de Justiça da Paraíba (TJPB) e do Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR). “A arquitetura é modular, e o sistema foi projetado para permitir uso mesmo por servidores sem conhecimento técnico avançado”, descreve Juliana.
Laura tem um “irmão mais velho”: Expedito. Ele foi desenvolvido pelo tribunal um ano antes de Laura, contando com o apoio de servidores e servidoras na fase de projeto. O robô automatiza atos cartorários relacionados à execução da sentença penal, como a emissão de ofícios e outros documentos necessários para cumprir decisões judiciais na área criminal. “Expedito realiza em dois minutos tarefas que antes levavam cerca de uma hora quando feitas por servidores. Isso representa uma redução de 97% no tempo de execução de tarefas cartorárias repetitivas”, conta a secretária de TIC do TJPE.
Clóvis e Mário Lúcio
Desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), o robô Clóvis atua na fase inicial do manejo dos processos eletrônicos, realizando a triagem e a etiquetagem no PJe. Ele também recebeu o nome em uma homenagem, ao jurista brasileiro Clóvis Beviláqua. O robô foi desenvolvido após a identificação de problemas decorrentes da triagem manual de processos.
De acordo com o assessor de automação do laboratório de inovação Toada Lab, Pedro Victor Dantas, o TJMA realizou uma cooperação técnica com o TJBA, que forneceu a base inicial para a solução. Em seguida, uma equipe interdisciplinar do laboratório adaptou e aprimorou o robô para as necessidades específicas do tribunal maranhense.
Foi realizado um planejamento detalhado, seguido de um projeto-piloto para testar a eficácia e realizar ajustes. Após o piloto, o robô foi implantado em 2022 e está em fase de expansão gradual para as unidades judiciárias do estado, com configuração específica para cada setor e otimizações baseadas nos retornos sobre as experiências dos usuários.
“O robô processa um arquivo, em média, a cada 30 segundos, o que representa um aumento significativo na produtividade da triagem e etiquetagem de processos. A automação também previne erros humanos durante esse processo”, afirma Dantas.
O tribunal desenvolveu ainda outro robô, o Mário Lúcio, para atuar na fase de distribuição de mandados judiciais, após terem sido identificados os desafios da Central de Mandados. Entre eles, estão a falta de padrão na escrita, a inconsistência dos Códigos de Endereçamento Postal e a subutilização de servidores em tarefas repetitivas.
O nome “Mário Lúcio” foi escolhido como uma homenagem a Mário Lúcio Ferreira, um oficial de justiça exemplar do TJMA que faleceu em 2020, durante a pandemia de covid-19. O projeto está passando por uma fase de adaptação e aprimoramento, a fim de torná-lo mais abrangente em seus trabalhos e expansível para as novas centrais de mandado inauguradas desde o lançamento do protótipo.
Mas as vantagens de sua utilização já podem ser mensuradas. “O robô agilizou a etapa de leitura e distribuição do mandado, levando em média 35 segundos para processá-lo e distribuí-lo, enquanto um servidor humano leva 1 minuto e 30 segundos. Estima-se uma economia de 14 horas para o processamento de 900 mandados diários”, contabiliza o assessor do TJMA.
Galileu e Ágata
Desenvolvido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4.ª Região (TRT-4), o Galileu se baseia em inteligência artificial generativa e teve a sua utilização recentemente recomendada pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho para uso em toda a Justiça do Trabalho. A ferramenta busca apoiar os magistrados e as magistradas na elaboração de minutas de sentenças, atuando como um assistente virtual. O Galileu realiza a leitura automática de petições iniciais e contestações, organizando as informações de forma estruturada e sugerindo minutas com os tópicos da sentença já dispostos em ordem lógica.
Enquanto isso, no Tribunal Regional do Trabalho da 5.ª Região, a robô Ágata faz o encaminhamento automático dos processos. De acordo com o diretor da Coordenação de Desenvolvimento e Manutenção de Sistemas da Secretaria de TIC do TRT-5, Leonardo Rodrigues Barreto, até o momento, ela encaminhou 10.533 processos ao Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Ágata integra um time composto por mais cinco robôs: o Inpres, cadastro automatizado de precatórios no Sistema de Gestão Eletrônica de Precatórios (GPrec), a partir de lista de beneficiários; o AjustaSessão, ferramenta que visa marcar os pedidos de sustentação oral/preferências nas sessões de julgamento; o AjustaVoto, que preenche o texto do dispositivo dos votos nas sessões; o IntegraDocs, que inclui os processos do PJe e os documentos físicos recebidos via protocolo no Processo Administrativo Digital (Proad); e o TaPago, que junta aos autos os alvarás de recibos de pagamento do Sistema de Interoperabilidade Financeira (SIF) e do Sistema de Controle de Depósitos Judiciais (Siscondj).
Criação de inteligências

A criação de todo esse contingente de mecanismos tecnológicos está alicerçada na atuação inovadora do CNJ ao longo de seus 20 anos. O caminho começou a ser aberto com a Resolução CNJ n. 91/2009, que instituiu o Modelo de Requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão de Processos e Documentos do Poder Judiciário. O normativo disciplinou a obrigatoriedade da utilização deles no desenvolvimento e na manutenção de sistemas informatizados para as atividades judiciárias e administrativas no âmbito do Poder Judiciário. O modelo foi atualizado, recentemente, por meio da Resolução CNJ n. 522/2023.
Também recentemente, o CNJ atualizou a Resolução CNJ n. 332/2020, que, há cinco anos, definiu os primeiros parâmetros sobre o uso da IA pelos tribunais brasileiros. Em fevereiro deste ano, a Resolução CNJ n. 615 agregou novas contribuições de especialistas e representantes da sociedade civil ao longo de um ano de debates, audiências e outras interações às regras para utilização de IA pela Justiça.
A norma traz orientações para diretrizes, requisitos e estrutura de governança para o desenvolvimento, o uso e a auditabilidade de ferramentas de inteligência artificial na Justiça, garantindo a conformidade com normas éticas, a proteção de dados pessoais, a mitigação de riscos e a supervisão humana no uso dessas tecnologias.
Além disso, a resolução tem o objetivo de que o uso de IA no Judiciário seja realizado de forma segura e ética e com a obrigatoriedade de supervisão humana, para assegurar a transparência e a rastreabilidade das decisões automatizadas. Para garantir a governança digital e a conformidade com padrões internacionais, ela prevê a criação do Comitê Nacional de Inteligência Artificial, responsável por monitorar e atualizar as diretrizes de uso da tecnologia.
Texto: Mariana Mainenti e Henrique Valente
Edição: Sarah Barros
Foto: Ana Araújo
Arte: Jeovah Herculano
Revisão: Caroline Zanetti
Agência CNJ de Notícias