Com base na recente decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu nacionalmente os processos que tratam da chamada pejotização nas relações de trabalho, observa-se o agravamento de um cenário de insegurança jurídica em torno da legalidade da pejotização e seus impactos sobre os direitos trabalhistas. A medida, ao interferir diretamente na atuação da Justiça do Trabalho, suscita questionamentos sobre a desfiguração de sua finalidade constitucional, especialmente no que tange à proteção do trabalhador hipossuficiente. Ao colocar em suspenso ações que discutem a substituição de vínculos empregatícios formais por contratos com pessoas jurídicas, a decisão provoca um necessário debate sobre os limites da terceirização e da livre iniciativa, frente aos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho previstos na Constituição Federal.
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta 2ª feira (14.abr.2025) decidiu suspender nacionalmente todos os processos que tratam da pejotização das relações de trabalho, até o julgamento definitivo do recurso (ARE 1532603), com repercussão geral, que envolve a validade desses contratos e a competência da Justiça do Trabalho para julgar as questões que envolvem o tema. A decisão desse julgamento servirá de base para todos os casos na Justiça.
Entidades repudiam decisão de Gilmar de suspender todas as ações de pejotização
A Associação Nacional dos Procuradores e Procuradoras do Trabalho (ANPT) criticou duramente a decisão que suspendeu processos sobre “pejotização”. Para a ANPT, a medida ofende a Justiça do Trabalho, prejudica o acesso à justiça, ignora o grande número de ações trabalhistas sobre o tema e os inquéritos do Ministério Público do Trabalho, além de favorecer a precarização do trabalho e desvalorizar os trabalhadores com carteira assinada. Leia a nota
A OAB/SP manifestou preocupação com a decisão que suspendeu os processos sobre “pejotização”, defendendo a competência constitucional da Justiça do Trabalho (art. 114, I, CF) para julgar fraudes contratuais, com base na análise da realidade dos fatos (art. 9º da CLT). A entidade também se posicionou sobre a distribuição do ônus da prova como matéria infraconstitucional, a ser regida pela CLT e CPC, com possível aplicação da carga dinâmica, e apelou por serenidade no debate, reconhecendo o papel do STF e a legitimidade da Justiça do Trabalho..
A Anamatra – Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho criticou a decisão que suspendeu os processos sobre “pejotização”, alegando que ela prejudica o funcionamento da Justiça do Trabalho, dado o grande número de ações. A associação argumenta que a EC 45/04 ampliou a competência da Justiça do Trabalho para todas as controvérsias derivadas de relações de trabalho, inclusive sem vínculo formal, e rebateu a alegação de desrespeito às decisões do STF, pois ainda não há jurisprudência vinculante sobre o tema. A Anamatra defende que a análise desses contratos continue sendo feita pela Justiça especializada.
O Que Está em Jogo
A promulgação da Lei nº 13.467/2017, (CLT) ao inserir os artigos 4º-A e 4º-C na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), acendeu um debate crucial sobre a natureza das relações de trabalho no Brasil. O ponto central da controvérsia reside na interpretação dessas novas disposições legais, que abriram a possibilidade de prestação de serviços entre pessoas jurídicas (PJ) mesmo quando presentes características tradicionalmente associadas ao vínculo empregatício, como a continuidade e a pessoalidade.
Essa mudança legislativa pavimentou o caminho para a intensificação da pejotização, uma prática que consiste na exigência ou no incentivo, por parte das empresas, para que trabalhadores se formalizem como pessoas jurídicas. O objetivo subjacente a essa estratégia é, frequentemente, o de mascarar verdadeiros vínculos empregatícios sob a roupagem de relações comerciais. Essa manobra permite às empresas evitar os encargos trabalhistas inerentes à contratação formal, como o pagamento de férias, 13º salário, FGTS, INSS e outros direitos previstos na CLT.
O que está em jogo, portanto, é a própria essência da proteção ao trabalhador e a integridade da legislação trabalhista. A legalização da prestação de serviços entre PJs, mesmo com a presença de continuidade e pessoalidade, levanta a seguinte questão fundamental: onde reside a linha divisória entre uma terceirização legítima e uma fraude trabalhista disfarçada?
A permissão legal para a “pejotização” com elementos de vínculo empregatício, se interpretada de forma excessivamente permissiva, pode abrir uma brecha perigosa para a precarização do trabalho. Empresas poderiam se valer dessa flexibilidade para impor a formalização como PJ a trabalhadores que, na prática, atuam sob as mesmas condições de um empregado tradicional, porém sem as devidas proteções legais.
Por outro lado, uma interpretação excessivamente restritiva dos artigos 4º-A e 4º-C poderia engessar as relações comerciais e impedir modelos de trabalho flexíveis que atendam às necessidades tanto de empresas quanto de alguns profissionais.
Diante desse cenário, o debate jurídico e econômico se intensifica. Juristas, magistrados, advogados, entidades de classe e empresários divergem sobre a correta aplicação e os limites da “pejotização”. O Judiciário é chamado a definir, caso a caso, se a relação estabelecida entre as partes configura uma prestação de serviços legítima entre empresas ou se, na realidade, oculta um verdadeiro vínculo empregatício fraudulento. O setor produtivo, por sua vez, busca clareza e segurança jurídica para definir suas estratégias de contratação
Argumentos Favoráveis à Pejotização: Flexibilização e Eficiência
A discussão em torno da “pejotização” no direito do trabalho brasileiro é complexa e multifacetada. Embora carregue consigo o risco de fraude e precarização, a prática também encontra amparo em argumentos técnicos e jurídicos que a defendem, especialmente quando analisada sob a ótica da flexibilização e da eficiência nas relações de trabalho contemporâneas.
Do ponto de vista da flexibilização, a “pejotização” pode ser vista como um mecanismo que se adapta melhor às dinâmicas do mercado de trabalho atual. As relações de trabalho tradicionais, regidas pela rigidez da CLT, nem sempre atendem às necessidades específicas de determinados setores e profissionais que buscam maior autonomia e controle sobre sua atuação. A possibilidade de contratar um profissional como PJ permite:
- Maior autonomia para o prestador de serviços: O profissional PJ possui maior liberdade para definir seus horários, forma de trabalho e aceitar ou não projetos, o que pode ser atrativo para aqueles que buscam flexibilidade e autogestão de sua carreira.
- Adaptação a projetos específicos: Empresas podem necessitar de expertise específica para projetos pontuais, sendo a contratação via PJ uma forma eficiente de acessar esse conhecimento por um período determinado, sem os encargos de uma contratação por prazo indeterminado.
- Diferentes modelos de negócio: A “pejotização” pode viabilizar modelos de negócio inovadores, como plataformas digitais e a chamada “gig economy”, onde a relação entre a plataforma e o prestador de serviços se assemelha mais a uma parceria comercial do que a um vínculo empregatício tradicional.
Sob a perspectiva da eficiência, a “pejotização” pode apresentar vantagens tanto para as empresas quanto, em alguns casos, para os profissionais:
- Redução de custos para as empresas: A contratação de PJs geralmente implica em menores encargos trabalhistas (FGTS, INSS patronal, férias, 13º salário, etc.), o que pode gerar uma redução significativa nos custos operacionais das empresas, tornando-as mais competitivas.
- Potencial de maior remuneração para o profissional: Em alguns casos, o profissional PJ pode negociar um valor de contrato superior ao salário que receberia como empregado, compensando a ausência dos benefícios trabalhistas e permitindo uma gestão financeira mais personalizada.
- Foco na expertise específica: A contratação via PJ permite que as empresas foquem na expertise específica do profissional para uma determinada tarefa ou projeto, sem a necessidade de arcar com os custos de um empregado em tempo integral quando a demanda não justifica.
- Agilidade na contratação e desvinculação: O processo de contratação e desvinculação de um PJ tende a ser mais ágil e menos burocrático do que a admissão e demissão de um empregado celetista.
É fundamental ressaltar que a defesa da “pejotização” sob esses argumentos pressupõe a licitude da relação, ou seja, que a contratação como PJ não seja utilizada como subterfúgio para fraudar a legislação trabalhista e ocultar um verdadeiro vínculo de emprego. Para que a “pejotização” seja considerada legítima, alguns elementos são cruciais:
- Ausência de subordinação jurídica: O profissional PJ deve ter autonomia na execução dos seus serviços, sem estar sujeito ao poder diretivo, disciplinar e fiscalizatório do contratante da mesma forma que um empregado.
- Eventualidade e especificidade dos serviços: A contratação via PJ pode ser mais adequada para serviços específicos, pontuais ou projetos com prazos definidos, que não se inserem na atividade-fim da empresa de forma contínua e essencial.
- Real capacidade empresarial do prestador: O profissional PJ deve possuir uma estrutura empresarial mínima, com registro formal, emissão de notas fiscais e, em alguns casos, investimento em equipamentos e recursos próprios para a execução dos serviços.
- Liberdade de organização e execução: O PJ deve ter liberdade para organizar seu trabalho, definir seus métodos e, em alguns casos, até mesmo subcontratar outros profissionais.
No contexto das relações de trabalho contemporâneas, marcadas pela ascensão da tecnologia, da economia compartilhada e de novas formas de organização do trabalho, a “pejotização”, quando utilizada de forma ética e transparente, pode representar uma ferramenta importante para a dinamização do mercado e para a criação de oportunidades que atendam às diferentes necessidades de empresas e profissionais. No entanto, é imprescindível um debate jurídico aprofundado e a atuação vigilante do Judiciário Trabalhista para garantir que essa flexibilidade não se traduza em exploração e na erosão dos direitos fundamentais dos trabalhadores. A linha tênue entre a flexibilização legítima e a fraude exige uma análise cuidadosa de cada caso concreto, levando em consideração a realidade fática da prestação de serviços e a intenção das partes envolvidas.
Críticas à Pejotização: Precarização e Fraude Trabalhista
Juridicamente, a crítica se fundamenta no princípio da primazia da realidade. Este princípio basilar do Direito do Trabalho estabelece que a realidade dos fatos prevalece sobre a forma jurídica adotada pelas partes. Assim, ainda que formalmente o trabalhador seja contratado como PJ, se na prática estiverem presentes os elementos caracterizadores do vínculo empregatício (subordinação, onerosidade, não eventualidade e pessoalidade – artigos 2º e 3º da CLT), a relação jurídica subjacente deve ser reconhecida como de emprego.
A precarização decorre da ausência dos direitos trabalhistas garantidos aos empregados celetistas. O “pejotizado” geralmente não tem direito a férias remuneradas, 13º salário, aviso prévio, FGTS, seguro-desemprego, licenças (maternidade, paternidade, saúde), além de menor proteção contra despedida arbitrária. Essa vulnerabilidade econômica e social é um dos principais argumentos contrários à “pejotização”.
A fraude trabalhista se configura quando a exigência ou o incentivo à formalização como PJ tem como objetivo primordial eximir o empregador dos encargos trabalhistas, mesmo diante de uma relação de trabalho tipicamente empregatícia. A utilização da PJ como mera “interposta pessoa” para a contratação de mão de obra, sem autonomia e com subordinação, configura burla à legislação, sendo passível de reconhecimento do vínculo empregatício pela Justiça do Trabalho, com a consequente condenação ao pagamento das verbas sonegadas.
A Lei nº 13.467/2017, ao introduzir os artigos 4º-A e 4º-C da CLT, que permitem a prestação de serviços entre PJs mesmo com continuidade e pessoalidade, intensificou o debate. Críticos argumentam que essa flexibilização excessiva pode legitimar práticas fraudulentas, dificultando a distinção entre a terceirização lícita e a “pejotização” fraudulenta. A preocupação é que a busca por eficiência e redução de custos por parte das empresas não se sobreponha à proteção dos direit
Equilíbrio entre Liberdade Contratual e Proteção Social
O debate sobre pejotização revela a tensão estrutural entre o modelo liberal de contratação e a garantia dos direitos fundamentais do trabalhador. A suspensão dos processos determinada por Gilmar Mendes deve ser interpretada como um momento de reflexão sobre os limites da autonomia privada frente às normas constitucionais.
O desafio jurídico contemporâneo reside na harmonização da liberdade contratual, essencial para a dinâmica econômica e a autonomia das partes, com a imperativa proteção social, fundamento do Estado Democrático de Direito e garantia da dignidade do trabalhador. A busca por esse equilíbrio dinâmico exige uma análise casuística e contextualizada das relações de trabalho, interpretando a legislação de forma a coibir fraudes e a precarização, sem, contudo, engessar modelos de trabalho inovadores e legítimas manifestações da autonomia da vontade, demandando um diálogo constante entre a legislação, a jurisprudência e as novas realidades do mercado de trabalho para assegurar tanto a eficiência econômica quanto a justiça social.